8
Vista para o Pão de Açúcar / Estou cada vez mais convencida de que muitos problemas relativos à baixa qualidade da arquitetura carioca hoje têm relação direta com a legislação urbana da cidade, que além de ser extremamente impositiva, restritiva, e por isso mesmo estúpida, permanece praticamente intocada há décadas. Além das varandas abertas, que tomaram como uma praga a habitação multifamiliar carioca nos últimos três decênios, muitos bairros foram adensados com base na tipologia da torre sobre embasamento destinado a garagem. Tipologia essa que, ignorando as observações feitas por Jane Jacobs ainda na década de 1960, simplesmente decretou o afastamento dos olhos em relação à rua e assim acabou contribuindo decisivamente para o aumento da violência e da insegurança urbana.

Surgiram mesmo situações quase cômicas, como a do edifício ao lado. A uniformidade da fachada, garantida pela repetição das janelas em fita, sugere que todos os pavimentos acima do térreo sejam iguais, com a sala voltada para a frente. Quando olhamos através do vidro do primeiro pavimento, porém, o que encontramos são carros estacionados. É verdade que no Brasil o carro tornou-se um símbolo de status tão inquestionável que a incorporação ao projeto de um abrigo capaz de proteger-lhe das intempéries e do vandalismo costuma ser facilmente justificável. Mas como justificar o fato de que este abrigo, além de ocupar o espaço supostamente mais nobre do edifício – do ponto de vista da sua relação com o espaço público -, receba o mesmo tratamento, o mesmo material, e até as mesmas esquadrias dos apartamentos? No caso, há ainda um detalhe: o estacionamento volta-se para o Parque do Flamengo, um dos parques urbanos mais extraordinários do mundo, projetado por Affonso Eduardo Reidy e Roberto Burle Marx. E tem bem à sua frente, pouco além do Parque e da Baía, nada senão o Pão de Açúcar.
7
Conheci ontem, finalmente, a Galeria Progetti. É uma delicada intervenção do arquiteto Pedro Rivera num dos estreitos sobrados da Travessa do Comércio, que encontrei suavemente banhado pela luz do outono, com trabalhos de Giancarlo Neri e Marcos Chaves.





6
Mar Morto / Será que a positividade com que continuamos a encarar a arquitetura é realmente benéfica para a sua prática? A interrogação me levou a propor aos alunos hoje uma discussão - propositalmente desviante em relação ao nosso percurso até aqui - em torno da relação entre Richard Serra, Robert Smithson e o contexto nova-iorquino (conduzida pela Martha Telles, que acaba de concluir tese sobre o tema). À perplexidade mais ou menos generalizada diante do Hotel Palenque (palestra de Smtihson aos alunos de arquitetura da Universidade de Utah, em 1972) seguiu-se então uma animada discussão sobre a ausência de um ambiente de discussão em arquitetura hoje no Rio, que me obrigou a reconhecer o papel limitado da minha própria ação, dentro da escola, em face dos inúmeros problemas que assolam atualmente a prática carioca da arquitetura, como a falta de referências intelectuais e projetuais contemporâneas, o descolamento entre arte e arquitetura, a escassez de concursos públicos e a inexistência de um debate capaz de ganhar a esfera pública, que se traduz no assombroso silêncio profissional diante da falta de foco das operações cada vez mais midiáticas da prefeitura carioca.

A situação é quase terminal. E no entanto não encontro nenhum sinal de mal-estar capaz de abalar a auto-confiança que segue escorando a disciplina da arquitetura entre nós, por mais que ela se mostre cada dia mais isolada e desimportante. Preferimos seguir mecanicamente projetando e cultuando monumentos do que aceitar o desafio de Rem Koolhaas, para livrar-nos da eternidade historicamente associada à arquitetura e enfrentar os riscos que envolvem a sua prática hoje.






5
Selva Urbana / Em que outra metrópole do séc. XXI uma cobra de 3 metros de comprimento pode ser encontrada serenamente atravessando a garagem de um edifício residencial? E em que outra metrópole do séc. XXI há bombeiros preparados e equipados para capturá-la – viva - em poucos minutos, sem causar pânico entre os moradores nem sacrificar o animal? A cena aconteceu domingo passado, num condomínio de 54 apartamentos logo atrás do shopping da Gávea (um dos mais centrais do Rio). Em seguida, a jibóia foi devolvida à floresta e os moradores voltaram para seus afazeres e aflições cotidianas, em seu mundo de cimento e asfalto onde todos os dias parecem iguais.



4
Em cartaz / Nenhuma cidade está tão associada ao cinema quanto Nova York. Conheço cada esquina dessa cidade por meio dos filmes de Hitchcock, Woody Allen e Spike Lee. As cenas de rua nova-iorquinas se tornaram tão familiares que, na tela, me reconheço muito mais cruzando a Ponte do Brooklyn que a Ponte Rio-Niterói. É que as cidades americanas parecem saídas do cinema, do mesmo modo que as cidades italianas parecem saídas de uma pintura, como observa Baudrillard.
Foi pensando nisso que decidi criar um espaço, na coluna ao lado, destinado a destacar vídeos experimentais sobre o Rio. O filme de estréia (Extra-large n.1) é um dos trabalhos de alunos do Curso de Arquitetura da PUC que será apresentado e discutido no dia 25, às 19 horas, no IAB (Rua do Pinheiro, 10, Flamengo), dentro do programa "Cidade Digital".

3
Disque-Choque / O Rio está vivendo um período, no mínimo, curioso. O chamado “Choque de Ordem”, praticado desde janeiro pela recém-criada Secretaria Especial de Ordem Pública, pode ser flagrado cotidianamente nas ruas: carros estão sendo rebocados, construções irregulares demolidas, vendedores ambulantes forçados a se cadastrar. Numa cidade entregue ao mais completo abandono nos últimos anos, é um sinal de mudança cujo componente simbólico convém a um prefeito jovem e ambicioso, como não poderia deixar de ser. Mas a espantosa ausência de um pensamento mais amplo sobre a cidade, e de uma política urbana que o acompanhe, me impedem de comemorar como eu bem gostaria.

Há poucos dias me deparei com mais uma dessas ações na zona sul da cidade. E pela primeira vez, dei-me conta de que a operação necessária para rebocar um único automóvel mobiliza outros tantos veículos, além do reboque propriamente dito, e várias pessoas (entre guardas de trânsito, fiscais, motoristas e operadores do guincho, contei algo em torno de 10 homens). Ora, numa metrópole como o Rio de Janeiro, cuja mobilidade já é tão sacrificada por sua situação geográfica, é de se perguntar se uma tal operação, conforme tem sido conduzida, não tem conseqüências mais negativas que positivas. Penso, por exemplo, no impacto – em termos de poluição do ar, consumo de combustível e congestionamento do sistema viário - causado pelo deslocamento do comboio da prefeitura até o local da ocorrência, o transtorno provocado pela obstrução de uma ou mais vias públicas até que a remoção do veículo infrator se consume (o que pode levar uma hora ou mais) etc. Somo a isso o deslocamento do comboio de volta até os depósitos públicos municipais – localizados em áreas centrais e com funcionamento limitado aos dias úteis, de 9 às 18 horas (ou seja, justamente no período em que há mais veículos circulando pelas ruas da cidade). Mais o deslocamento do próprio proprietário do veículo, que, mesmo esbravejando muito, não tem outra alternativa senão resgatá-lo pessoalmente. Feitas as contas, será que o reboque de um ou dois carros estacionados irregularmente justifica todo esse impacto? Quanto se consome, em termos financeiros e ambientais, a cada operação do gênero? Será que o número de carros rebocados por dia em todo o município (cerca de 20, segundo dados divulgados pela Secretaria de Ordem Pública relativos ao mês de fevereiro de 2009) é alto o suficiente, em termos percentuais, quando se considera o conjunto da frota motorizada do Rio de Janeiro? Não defendo o descumprimento do Código de Trânsito, e muito menos a ocupação irregular do espaço público. Mas o problema, me parece, está na situação crítica desta cidade, cujo desregramento exige muito mais que um “choque”.
2
Maravilha de Cidade / É claro que a minha carta não foi publicada. E no dia seguinte, o maior jornal do Rio ainda soltou outra matéria sobre o Hospital, de novo sem mencionar o arquiteto. A quem importa? Talvez aos técnicos da Unesco, que percorrem a cidade-candidata ao título de "Patrimônio Cultural da Humanidade". Só que os "trunfos da candidatura", segundo o mesmo jornal, são o Maracanã, a Bossa-nova e claro, o Carnaval.

Posto 5 / mai 09

1
A inauguração do Hospital Sarah-Rio está sendo amplamente noticiada pela imprensa carioca. Mas o nome de Lelé tem sido injustamente omitido. É mais um triste sinal do descaso pela arquitetura no Rio de Janeiro. Segue carta que enviei hoje ao "Globo":

"A inauguração do Hospital Sarah-Rio, destacada na primeira página do jornal "O Globo" de hoje, de fato integra o Rio a uma rede hospitalar reconhecida internacionalmente. Mas não apenas na área da Saúde. Também no campo da Arquitetura a Rede Sarah é hoje referência indiscutível, e isso graças à ação do arquiteto João Filgueiras Lima, Lelé, autor dos projetos de todas as suas unidades e coordenador do Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), localizado em Salvador. Lelé está entre os maiores arquitetos brasileiros de todos os tempos, e é uma ofensa à própria arquitetura brasileira que seu nome não seja sequer mencionado nas matérias publicadas na imprensa carioca."