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Estado da Arte / Texto que escrevi para a seção "Estado da Arte", d'O Globo, a pedido do jornal:
 
 
"Protagonismo sob suspeita

 
Não há dúvida de que a arquitetura no Brasil desfruta hoje de um protagonismo raro, talvez só comparável, em tempos recentes, ao período de maior expressão do moderno que teve seu vértice e limite em Brasília. As circunstâncias são muito distintas, no entanto. O que move a arquitetura no Brasil hoje não é, evidentemente, o idealismo que projetou e ergueu em três anos uma capital no Planalto.  A situação atual da arquitetura no Brasil tem a ver com um quadro complexo que envolve uma conjunção de fatores político-econômicos, como a estabilidade registrada pelo Brasil diante da crise econômica mundial, as políticas públicas de geração de emprego e renda, a ampliação da classe média, a descoberta da camada de pré-sal e a sintomática eleição do país como sede de uma sequência de megaeventos internacionais, tanto de origem religiosa quanto esportiva.

De todo modo, e ainda que em novo registro, conta-se mais uma vez com os apelos da “modernização” para levar adiante um modelo de desenvolvimento econômico que tem um impacto enorme e imediato sobre a já caótica dinâmica da urbanização brasileira. A disseminação desse modelo é evidente: em cidades como Parauapebas ou Rio de Janeiro, o que vemos hoje é um processo acelerado de transformações urbanas fortemente ancorado na arquitetura, do qual esta em primeira instância se beneficia, em termos de um aumento progressivo de clientes, projetos e negócios. Há um aquecimento do mercado de trabalho hoje que era impensável poucas décadas atrás, e do qual a multiplicação e expansão dos cursos de graduação e pós-graduação em arquitetura no Brasil é um dos sintomas. Outros, talvez mais evidentes, estão nas próprias ruas, onde as caçambas, placas e massivos canteiros de obras se multiplicam em cidades de médio e grande país afora. Assim como se multiplicam os arquitetos, investidores e empresas de origem estrangeira que aportam aqui em busca de oportunidades.
A esse movimento corresponde a emergência indiscutível de um tema incontornável para a arquitetura hoje, que é a cidade.  Ou melhor, a crise da cidade. A deterioração das condições de existência na cidade, o colapso de infraestrutura e serviços, as desigualdades sociais e territoriais, a violência, o eterno conflito entre interesses privados e públicos, tudo isso que está atualmente na agenda da arquitetura, no mundo todo, ganha aqui uma dimensão aguda, evidenciada claramente nas manifestações de junho. Porque, no fundo, os confrontos evidenciaram não só a crise da cidade, mas também o grau de insatisfação popular com as políticas urbanas vigentes: com o transporte público, o saneamento, a segurança pública, a habitação, a truculência do processo de transformações urbanas de uma cidade que se prepara para as Olimpíadas. O que veio à tona, afinal, foi a recusa a um modelo de cidade limitada a poucos, em detrimento de muitos. Por isso, se as reivindicações se mostraram variadas, e muitas vezes difusas, a estratégia não deixou de ser fundamentalmente a mesma: ocupar o espaço público – ou o que se entende como tal, seja uma praça, uma rua, um túnel – e forçar sua redefinição.
Neste sentido, as manifestações e ocupações recentes tem muito a dizer aos arquitetos. Porque ao mesmo tempo em que a arquitetura salta aos olhos, no Brasil, como protagonista de um período de grandes transformações que tem sua expressão máxima na cidade (e o Rio de Janeiro tem se mostrado exemplar neste sentido, ao investir maciçamente em obras icônicas como o MIS, o MAR e o Museu do Amanhã), uma crise disciplinar vai se mostrando cada vez mais incontornável para os arquitetos brasileiros. Se conseguimos contornar a autocrítica que forçou a reorientação do pensamento e da prática projetual da arquitetura na segunda metade do século XX, talvez não possamos escapar da crise que parece se anunciar sob a expansão do mercado arquitetônico brasileiro e dos sinais de sucesso colhidos sob a pressão dos calendários impostos pelos programas políticos, investimentos e megaeventos.
Não por acaso, em contraste com as imagens renderizadas de lançamentos arquitetônicos que preenchem as páginas dos jornais, e os investimentos vistosos em infraestrutura que vem redefinindo nossas paisagens urbanas, cresce o interesse pelo repertório de usos – muitos deles imprevistos - que as cidades brasileiras revelam, em sua incrível vitalidade e criatividade. Coisas como o Baile do “Dutão”, que cresceu sob o viaduto de Madureira, subvertendo sua lógica rodoviarista e transformando-o num dos salões de baile mais elegantes da cidade. Ou a farra dos skatistas sob a marquise de Niemeyer no Ibirapuera, numa manhã de domingo em São Paulo.
Vinte anos depois que a crise do urbanismo foi tematizada por Rem Koolhaas, começam também a surgir no Brasil coletivos que testam novas formas de ação e associação à revelia das estratégias de city-branding associada a desastrosos processos de reestruturação urbana mundo afora. Operando numa escala pontual, com ações menos formalizadas que muitas vezes se constroem por desdobramentos, pequenos grupos como CRIT, Basurama e Partizaning, hoje ativos em várias cidades do mundo, procuram abrir novas perspectivas para a arquitetura do ponto de vista da sua prática política e projetual, com base na exploração de modos colaborativos que frequentemente envolvem também novos meios de financiamento e realização. Por isso mesmo, considero seu mapeamento uma das contribuições mais produtivas da X Bienal de Arquitetura de São Paulo, atualmente em curso em vários espaços da capital paulistana (com curadoria de Guilherme Wisnik, Ligia Nobre e eu).
Pode não ser muito, se comparado à arquitetura que costuma ser identificada com profissionais e obras de sucesso, e frequentemente usada para atrair investidores e turistas. E mesmo em relação ao patrimônio arquitetônico que nos foi legado pela geração de arquitetos que construiu Brasília. Mas justo neste desequilíbrio pode estar a chave para o que Margit Mayer identifica com um dos saldos mais desafiadores dos novos movimentos sociais: a demanda por uma prática de projeto (de arquitetura, urbanismo, design) que vá além da sua concepção mais ordinária, como serviço voltado para a solução de problemas e demandas, e considere sua potência para construir criticamente novas relações sociais."

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