7
Estado da Arte / Texto que escrevi para a seção "Estado da Arte", d'O Globo, a pedido do jornal:
"Protagonismo sob
suspeita
Não há dúvida de que a arquitetura no Brasil desfruta hoje de
um protagonismo raro, talvez só comparável, em tempos recentes, ao período de
maior expressão do moderno que teve seu vértice e limite em Brasília. As
circunstâncias são muito distintas, no entanto. O que move a arquitetura no
Brasil hoje não é, evidentemente, o idealismo que projetou e ergueu em três
anos uma capital no Planalto. A situação
atual da arquitetura no Brasil tem a ver com um quadro complexo que envolve uma
conjunção de fatores político-econômicos, como a estabilidade registrada pelo
Brasil diante da crise econômica mundial, as políticas públicas de geração de emprego e renda, a ampliação da
classe média, a descoberta da camada de pré-sal e a sintomática eleição do país
como sede de uma sequência de megaeventos internacionais, tanto de origem
religiosa quanto esportiva.
De todo modo, e ainda que em novo registro, conta-se mais
uma vez com os apelos da “modernização” para levar adiante um modelo de desenvolvimento
econômico que tem um impacto enorme e imediato sobre a já caótica dinâmica da
urbanização brasileira. A disseminação desse modelo é evidente: em cidades como
Parauapebas ou Rio de Janeiro, o que vemos hoje é um processo acelerado de transformações
urbanas fortemente ancorado na
arquitetura, do qual esta em primeira instância se beneficia, em termos de um
aumento progressivo de clientes, projetos e negócios. Há um aquecimento
do mercado de trabalho hoje que era impensável poucas décadas atrás, e do qual
a multiplicação e expansão dos cursos de graduação e pós-graduação em
arquitetura no Brasil é um dos sintomas. Outros, talvez mais evidentes, estão
nas próprias ruas, onde as caçambas, placas e massivos canteiros de obras se multiplicam
em cidades de médio e grande país afora. Assim como se multiplicam os
arquitetos, investidores e empresas de origem estrangeira que aportam aqui em busca
de oportunidades.
A esse movimento corresponde a emergência indiscutível de um
tema incontornável para a arquitetura hoje, que é a cidade. Ou melhor, a crise da cidade. A deterioração
das condições de existência na cidade, o colapso de infraestrutura e serviços,
as desigualdades sociais e territoriais, a violência, o eterno conflito entre
interesses privados e públicos, tudo isso que está atualmente na agenda da
arquitetura, no mundo todo, ganha aqui uma dimensão aguda, evidenciada
claramente nas manifestações de junho. Porque, no fundo, os confrontos evidenciaram não só a crise da cidade, mas
também o grau de insatisfação popular com as políticas urbanas vigentes: com o
transporte público, o saneamento, a segurança pública, a habitação, a truculência
do processo de transformações urbanas de uma cidade que se prepara
para as Olimpíadas. O que veio à tona, afinal, foi a recusa a um modelo de
cidade limitada a poucos, em detrimento de muitos. Por isso, se as
reivindicações se mostraram variadas, e muitas vezes difusas, a estratégia não
deixou de ser fundamentalmente a mesma: ocupar o espaço público –
ou o que se entende como tal, seja uma praça, uma rua, um túnel – e forçar sua redefinição.
Neste sentido, as
manifestações e ocupações recentes tem muito a dizer aos arquitetos. Porque ao
mesmo tempo em que a arquitetura salta aos olhos, no Brasil, como protagonista
de um período de grandes transformações que tem sua expressão máxima na cidade
(e o Rio de Janeiro tem se mostrado exemplar neste sentido, ao investir maciçamente
em obras icônicas como o MIS, o MAR e o Museu do Amanhã), uma crise disciplinar
vai se mostrando cada vez mais incontornável para os arquitetos brasileiros. Se
conseguimos contornar a autocrítica que forçou a reorientação do pensamento e
da prática projetual da arquitetura na segunda metade do século XX, talvez não
possamos escapar da crise que parece se anunciar sob a expansão do mercado arquitetônico
brasileiro e dos sinais de sucesso colhidos sob a pressão dos calendários impostos
pelos programas políticos, investimentos e megaeventos.
Não por acaso, em
contraste com as imagens renderizadas de lançamentos arquitetônicos que preenchem
as páginas dos jornais, e os investimentos vistosos em infraestrutura que vem
redefinindo nossas paisagens urbanas, cresce o interesse pelo repertório de
usos – muitos deles imprevistos - que as cidades brasileiras revelam, em sua
incrível vitalidade e criatividade. Coisas como o Baile do “Dutão”, que cresceu
sob o viaduto de Madureira, subvertendo sua lógica rodoviarista e
transformando-o num dos salões de baile mais elegantes da cidade. Ou a farra
dos skatistas sob a marquise de Niemeyer no Ibirapuera, numa manhã de domingo
em São Paulo.
Vinte anos depois
que a crise do urbanismo foi tematizada por Rem Koolhaas, começam
também a surgir no Brasil coletivos que testam novas formas de ação e
associação à revelia das estratégias de city-branding
associada a desastrosos processos de reestruturação urbana mundo afora. Operando
numa escala pontual, com ações menos formalizadas que muitas vezes se constroem
por desdobramentos, pequenos grupos como CRIT, Basurama
e Partizaning, hoje ativos em várias cidades do mundo, procuram abrir novas
perspectivas para a arquitetura do ponto de vista da sua prática política e
projetual, com base na exploração de modos colaborativos que frequentemente
envolvem também novos meios de financiamento e realização. Por isso mesmo, considero
seu mapeamento uma das contribuições mais produtivas da X Bienal de Arquitetura
de São Paulo, atualmente em curso em vários espaços da capital paulistana (com curadoria de Guilherme Wisnik, Ligia Nobre e eu).
Pode não ser muito,
se comparado à arquitetura que costuma ser identificada com profissionais e
obras de sucesso, e frequentemente usada para atrair investidores e turistas. E
mesmo em relação ao patrimônio arquitetônico que nos foi legado pela geração de
arquitetos que construiu Brasília. Mas justo neste desequilíbrio pode estar a
chave para o que Margit Mayer identifica com um dos saldos mais desafiadores
dos novos movimentos sociais: a demanda por uma prática de projeto (de
arquitetura, urbanismo, design) que vá além da sua concepção mais ordinária,
como serviço voltado para a solução de problemas e demandas, e considere sua
potência para construir criticamente novas relações sociais."
Nenhum comentário:
Postar um comentário