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Cosmos, Contexto, Sustentabilidade e José Resende / Amanhã, domingo, tem José Resende no Forte de Copacabana (às 17 hs). Não sei sobre o que, exatamente, ele vai falar - o que pode sair de um evento midiático sobre sustentabilidade, e da conversa com Miguel Rio Branco? Em todo caso, vale a pena ler a carta que ele mandou pra revista "Cosmos e Contexto" (www.cosmosecontexto.org.br), publicada ontem:

"Em uma leitura rápida dos números anteriores da revista fiquei surpreso ao encontrar dois artigos relativos à manifestação plástica e a menção logo no início do artigo de Paolo Rossi, citando Thomas Kuhn, sobre a relação diversa dos artistas com o passado da arte em oposição à relação dos pesquisadores da ciência frente à história das ideias.


No segundo número há o diálogo entre Ana Freitas e Mario Novello “na tentativa de produzir uma imagem que represente e seja fiel ao conceito de espaço-tempo da física moderna”, no qual a objetividade da critica que se fez às imagens sugeridas pela artista é invejável, considerando que hoje em dia é muito raro encontrar opiniões tão incisivas nos textos que discutem a produção de arte como as que aparecem na argumentação de Mario Novello frente às obras de Ana Freitas.


Entretanto, acho que há um problema na premissa do diálogo, quando se aceita a ideia de uma imagem que represente o conceito. Ao colocar a imagem submetida ao conceito desta forma, ela fica necessariamente reduzida à condição de ilustrá-lo e, assim, incapaz de representar (ou reapresentar) o conceito. Ou seja, a imagem perde sua autonomia. Daí, a meu ver, a necessária insatisfação do crítico frente a elas.


Nada contra a ilustração como tal, nem mesmo reduzir ou rebaixar sua qualidade e pertinência, mas acredito que o importante é diferenciar uma coisa de outra. Uma coisa é ilustrar, que está na esfera da comunicação, outra coisa é a imagem valer apenas como expressão, com significado em si mesma.


Para exemplificar, fica mais fácil evocar a poesia, a literatura: qualquer texto que se proponha comunicar uma certa ideia ou mensagem pode ser avaliado por qualidades que lhe são próprias como clareza, precisão, sua capacidade de sintetizar e não dar margem à duvidas em relação ao que se quer comunicar. Uma obra literária, ao contrario, só pode ser avaliada exatamente pelas qualidades simétricas e opostas à estas, ou seja, que seu significado não se esgote, que a cada releitura novos sentidos se desdobrem, que permaneça sempre ressignificando, pois é claro que não está atendendo a finalidade alguma que não seja reiterar a si mesma.


Há uma diferença muito grande entre este diálogo e o que ocorreu no terceiro número da revista, onde as imagens das telas de Ivano Soares são intercaladas por poemas de Mario Novello. Nesses poemas, o que se expressa é uma disposição existencial que se manifesta frente ao desafio de construir um conceito. Aqui, ao invés de interpretar ou ilustrar uma coisa com a outra, tanto o texto como a imagem se apresentam como manifestações expressivas paralelas e que se assemelham.


É curioso notar, entretanto, que a atitude crítica no primeiro diálogo se permite muito mais ativa e interferente, influindo claramente no processo de transformação da própria imagem, enquanto no outro, para o diálogo com as telas se apresenta um exercício paralelo de expressão, que demonstra uma identidade, manifesta através de processos expressivos diferentes.


A diferença que eu gostaria de ressaltar diz respeito justamente à posição do espectador frente à manifestação expressiva plástica: buscar um sentido ou significado por trás da imagem para lhe dar razão de ser – o que afinal ela representa – é uma atitude muito diversa daquela de quem se põe frente à expressão tentando entender o que ela é por si mesma, como esta expressão se organiza, se estrutura e se consubstancia como coisa colocada no mundo.


Pode-se dizer que do espectador da obra de arte se espera uma disposição frente ao trabalho muito semelhante àquela de quem a produziu.


Frente a uma tela, queiramos ou não, nos reportamos a ela sempre como Arte.


De fato a obra de Picasso não relegou a de Rembrandt aos depósitos, como diz Khun. Cézanne já havia afirmado que a pintura pinta a pintura, porém frente às suas telas a quem de fato se exige mudança é daquele que as olha, pois ali se vê maçãs, pessoas, o Monte de Sainte-Victoire representados, mas, de fato, para quem quer mesmo ver, ali estão pinceladas que constroem imagens, com tonalidades, direções e sentidos definidos, que explicitam a forma com que a tela se constituiu.


Talvez Marcel Duchamp, o mais racionalista dos artistas, aliás como um bom francês não poderia deixar de ser, tenha percebido que estava dentro de um determinado sistema de produzir arte e rompeu com ele, produzindo e exercendo um outro. Sua principal referência e ferramenta foram o chiste, o trocadilho, o duplo sentido, a ambiguidade. Pode-se dizer a relatividade. Como ele diz, o relógio visto de perfil não mostra as horas.


A frase de Thomas Khun permite desdobramentos. Embora seja impróprio afirmar que em arte haja progresso, não sei se em Rembrandt, mas seguramente só é possível ver Poussin, Delacroix, Manet e o próprio Cèzanne sob o prisma que passa por Picasso e o Cubismo. E seguramente estamos mais próximos de entender todos eles e o próprio Picasso através da compreensão que Pollock teve disso tudo.


Não que a história da arte seja linear, mas o olhar nunca é ingênuo. E é até muito menos do que nos damos conta. Há uma memória visual constituída e influente que nos condiciona e dá um repertório definido, que na maioria das vezes cria um sistema vicioso, até preconceituoso de ver.


Da perspectiva de quem produz arte, que é de onde eu falo, é preciso reconhecer e diferenciar as transformações pelas quais vem passando esta produção. Processo que evidentemente já ocorreu em outras áreas na medida de sua ampliação, como, por exemplo, na atividade editorial em relação a literatura e o aparecimento dos best-sellers, na indústria fonográfica em relação a música, inclusive a música clássica, e até mesmo no cinema, que já nasceu industrial, mas que fez já do cinema de diretor coisa do passado. Atrasados e tardios nisso ficaram o teatro e as artes plásticas.


É inegável, entretanto, que todas as facilidades de comunicação, assim como as do controle sobre as informações, fizeram a produção, mas, sobretudo, o mercado de arte se ampliar e assumir o controle do que se reconhece como arte.


Lógico que essa ampliação só poderia gerar um fenômeno que é o da profissionalização,
determinando mudanças pelo que se entende como carreira profissional, aliás não só a dos artistas, mas de todos que interferem nesse processo, como, por exemplo, críticos e teóricos que ajudavam a pensar a produção e que hoje tornaram-se curadores e a manipulam.


Ou seja, até pouco tempo atrás era através da efetivação e reconhecimento de sua produção que um artista ia se tornando profissional. O artista que se integrou agora a este sistema ampliado pensa antes a sua carreira e muitas vezes a efetiva até com sucesso antes mesmo, por paradoxal que pareça, de produzir seu próprio trabalho. São inúmeros os exemplos de artistas que muito prematuramente se tornaram clássicos de si mesmos na repetição exaustiva de uma mesma ideia, que muitas vezes é a sua primeira e única. Talvez isso seja decorrência da lógica de fixar no mercado sua produção.


Não tenho sobre isso nenhum julgamento de ordem moral, pois não haveria razão nem justificativa para a produção de arte ficar isenta e incólume em relação ao sistema do valor e sua lógica de ampliação. Mas, por outro lado, o que constato é que o diálogo no meio da arte está cada vez mais pobre. O que se discute é a carreira profissional, as exposições estão cada vez mais parecidas entre si, aqui e pelo mundo afora, os comentários são mais trocas de informação do que pensamento sobre o que se produz, enfim, uma chatura. O que eu defendo é buscar outras alternativas de se relacionar com a produção de arte e é nesta medida que a revista me surpreendeu pela decisão tão afirmativa e genuína de interesse em dialogar com a expressão plástica.


Para terminar, também devo confessar outra surpresa que foi a possibilidade de partilhar conhecimentos para os quais imaginava ser necessário dominar um vocabulário de matemática, que para mim é inacessível. Sinceramente, o conceito espaço-tempo, mesmo na parca compreensão que fui capaz de formar, me traz muito mais curiosidade e motivação do que eu consigo ter com a produção que o meio da arte vem apresentando.


Obrigado,


José Resende"


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(* José Resende é artista plástico, vive e trabalha em São Paulo.)

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