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Ó / Devo esta ao Antonio, que foi capaz de aproximar Jorge Moreira e Nuno Ramos:
"Prédios vazios podem ser chamados de orgânicos, pois tudo funciona numa uniformidade em fluxo, dobrada sobre si mesma. Quando o silêncio, o pó, as sombras quase sólidas desses edifícios, cortadas pelas quinas das paredes, impõem sua gravidade, então não há fala nem memória, não há lugar para se estar dentro, e a arquitetura, o que ainda há de arquitetura, se fecha em elementos genéricos, inabitáveis, como o chão de taco, a laje acima, o muro à frente. Não digo isto apenas de prédios antigos onde o tempo, por ser o verdadeiro morador, expulsa o que é presente agora. Não, mesmo em prédios novos há um desejo de solidão e de não-vida, de permanecer uma construção sem uso nem destino. Moradores perturbam a placidez de um espaço que sem eles é mais perfeito, não funcionando para nada e guardando, como um recém-nascido, suas possibilidades para si. A casa onde o amor entrou gastou a pedra, puiu o cortinado, engordurou o azulejo. Saturou a esquerda e a direita, o alto e o baixo com o ir e vir de sua herança, de seu lajedo, de seu pombal e ainda um dia – um dia claro, entre mãos crispadas e beijos sólidos. A casa onde o amor entrou encheu cada lugar com um destino, um sucesso ou um fracasso, que passam por ela, insetos breves, com se fossem durar mais que seus tijolos, colunas e lajes.
Por isso há talvez em cada construção vazia um fundo solene, intocado, esperando desvelamento, alguma coisa para sempre adiada. Por isso não deveriam ser inauguradas nunca, ou ainda: seria preciso inaugurá-las precisamente para que ficassem vazias, com cerimônia de cortar fita, orquestra sinfônica, fotógrafos de colunas sociais, prefeito, secretário de cultura, artistas, mas todos do lado de fora, olhando de longe um espaço que não os receberia. Isso talvez desse à arquitetura alguma coisa de verdadeiramente sua, inútil e despropositada, uma ambientação de paredes para paredes, aparentemente tão desumana quanto cheia de significados para os homens. E quando criticassem o investimento, o despropósito do gasto público, responderíamos com o silêncio do próprio prédio, até que todos entendessem.
Claro que há em mausoléus e túmulos um pouco destas características. Afinal, diversas áreas não são acessíveis a ninguém, nem mesmo ao morto, aprisionado em seu caixão, e fecham-se sobre si mesmas, enchendo de pedras o corredor que leva à múmia. Pirâmides querem glorificar seu rei com tamanho desperdício, mas esta finalidade é justamente o que macula a limpidez arquitetônica. É o poder de uma determinada época e de um punhado de homens o que nos olha do alto daquelas escadas enormes onde milhões de pedras carregam uma última, a mais alta delas, e as supertições e maldições subseqüentes parecem vingar anacronicamente esta violência. Não, eu falo de uma inutilidade feita de cal e argamassa, de uma inconseqüência sólida, edificada por nós mesmos, bem à nossa frente, que nos livre do que parece útil, de nossas intenções e propósitos, que tanto miséria já causaram. Falo de um muro que nem à lamentação se ofereça; de um telhado que nada cubra; de uma extensa fundação sem nada construído a partir dela. Falo de uma fronteira que não divida, de um monumento que não celebre, feito de um aço mole, de um mármore frágil como penugem.
Seria possível, é claro, circundar esse edifício, ter a noção de seu contorno, de sua imponência. Nada de vidro para que ninguém o visse por dentro. Tentativas de invasão de ONGs de sem-teto, pichações cobrindo o muro externo, jornais reproduzindo a opinião (contrária) das associações de bairro, talvez um enorme placar eletrônico, HOJE FAZ (XXX) DIAS QUE FOI INAUGURADO, se espalhariam pela cidade, mas aos poucos, e o tempo das paredes á tão maior que o nosso, todos se acostumariam e o crescimento urbano o envolveria com novas ruas e construções, novos letreiros e outdoors, e, como um trambolho de cuja origem ninguém se lembra mais, viraria um marco físico para os moradores locais – Está vendo aquele prédio? Vire na segunda à esquerda depois dele. Agora imagine, depois de tanto tempo fechado, a pureza de cada metro de seu interior, como um pórtico do sono, um museu do esquecimento. [...]
O monumento esquecido ganharia do próprio esquecimento seu atestado de autenticidade, e neste paradoxo se encerraria. Mas, aos poucos, quem sabe, sua história seria reconstituída por historiadores, parte da mídia se interessaria pelo caso e filas de pessoas circundariam o velho edifício, tateando-o por fora. Então ruiria por si mesmo, intocado, a começar pelo velho telhado, e subindo nos prédios mais altos verdadeiras multidões se aglomerariam para olhar a montanha de entulho. Predadores roubariam pedaços de concreto, vendendo-os como talismãs. Ao final de algumas décadas, quase nada restaria do edifício original. Então, uma nova etapa seria inaugurada, com o vão de uma quadra quase inteira vazia, obedecendo ao formato original do prédio, sem muros nem grades, mas onde ninguém entraria. Pois seria de péssimo alvitre ultrapassar a linha imaginária entre a calçada e o espaço onde o prédio estivera. Crianças seriam educadas, por gerações a fio, a não pisar além dessa linha, deixando aquele terreno vazio no coração da cidade superpovoada. Restaurantes com varandas, apartamentos de cobertura, mirantes com lunetas seriam construídos voltados para o solo de terra e de cimento, onde algumas colunas permaneceriam de pé. E desfeito, derrubado pelo tempo, vazio até mesmo de seu piso e de suas paredes, o antigo edifício ofereceria à cidade o patrimônio de uma pergunta. "
Ó, Nuno Ramos (Iluminuras, 2008)
Ó / Devo esta ao Antonio, que foi capaz de aproximar Jorge Moreira e Nuno Ramos:
"Prédios vazios podem ser chamados de orgânicos, pois tudo funciona numa uniformidade em fluxo, dobrada sobre si mesma. Quando o silêncio, o pó, as sombras quase sólidas desses edifícios, cortadas pelas quinas das paredes, impõem sua gravidade, então não há fala nem memória, não há lugar para se estar dentro, e a arquitetura, o que ainda há de arquitetura, se fecha em elementos genéricos, inabitáveis, como o chão de taco, a laje acima, o muro à frente. Não digo isto apenas de prédios antigos onde o tempo, por ser o verdadeiro morador, expulsa o que é presente agora. Não, mesmo em prédios novos há um desejo de solidão e de não-vida, de permanecer uma construção sem uso nem destino. Moradores perturbam a placidez de um espaço que sem eles é mais perfeito, não funcionando para nada e guardando, como um recém-nascido, suas possibilidades para si. A casa onde o amor entrou gastou a pedra, puiu o cortinado, engordurou o azulejo. Saturou a esquerda e a direita, o alto e o baixo com o ir e vir de sua herança, de seu lajedo, de seu pombal e ainda um dia – um dia claro, entre mãos crispadas e beijos sólidos. A casa onde o amor entrou encheu cada lugar com um destino, um sucesso ou um fracasso, que passam por ela, insetos breves, com se fossem durar mais que seus tijolos, colunas e lajes.
Por isso há talvez em cada construção vazia um fundo solene, intocado, esperando desvelamento, alguma coisa para sempre adiada. Por isso não deveriam ser inauguradas nunca, ou ainda: seria preciso inaugurá-las precisamente para que ficassem vazias, com cerimônia de cortar fita, orquestra sinfônica, fotógrafos de colunas sociais, prefeito, secretário de cultura, artistas, mas todos do lado de fora, olhando de longe um espaço que não os receberia. Isso talvez desse à arquitetura alguma coisa de verdadeiramente sua, inútil e despropositada, uma ambientação de paredes para paredes, aparentemente tão desumana quanto cheia de significados para os homens. E quando criticassem o investimento, o despropósito do gasto público, responderíamos com o silêncio do próprio prédio, até que todos entendessem.
Claro que há em mausoléus e túmulos um pouco destas características. Afinal, diversas áreas não são acessíveis a ninguém, nem mesmo ao morto, aprisionado em seu caixão, e fecham-se sobre si mesmas, enchendo de pedras o corredor que leva à múmia. Pirâmides querem glorificar seu rei com tamanho desperdício, mas esta finalidade é justamente o que macula a limpidez arquitetônica. É o poder de uma determinada época e de um punhado de homens o que nos olha do alto daquelas escadas enormes onde milhões de pedras carregam uma última, a mais alta delas, e as supertições e maldições subseqüentes parecem vingar anacronicamente esta violência. Não, eu falo de uma inutilidade feita de cal e argamassa, de uma inconseqüência sólida, edificada por nós mesmos, bem à nossa frente, que nos livre do que parece útil, de nossas intenções e propósitos, que tanto miséria já causaram. Falo de um muro que nem à lamentação se ofereça; de um telhado que nada cubra; de uma extensa fundação sem nada construído a partir dela. Falo de uma fronteira que não divida, de um monumento que não celebre, feito de um aço mole, de um mármore frágil como penugem.
Seria possível, é claro, circundar esse edifício, ter a noção de seu contorno, de sua imponência. Nada de vidro para que ninguém o visse por dentro. Tentativas de invasão de ONGs de sem-teto, pichações cobrindo o muro externo, jornais reproduzindo a opinião (contrária) das associações de bairro, talvez um enorme placar eletrônico, HOJE FAZ (XXX) DIAS QUE FOI INAUGURADO, se espalhariam pela cidade, mas aos poucos, e o tempo das paredes á tão maior que o nosso, todos se acostumariam e o crescimento urbano o envolveria com novas ruas e construções, novos letreiros e outdoors, e, como um trambolho de cuja origem ninguém se lembra mais, viraria um marco físico para os moradores locais – Está vendo aquele prédio? Vire na segunda à esquerda depois dele. Agora imagine, depois de tanto tempo fechado, a pureza de cada metro de seu interior, como um pórtico do sono, um museu do esquecimento. [...]
O monumento esquecido ganharia do próprio esquecimento seu atestado de autenticidade, e neste paradoxo se encerraria. Mas, aos poucos, quem sabe, sua história seria reconstituída por historiadores, parte da mídia se interessaria pelo caso e filas de pessoas circundariam o velho edifício, tateando-o por fora. Então ruiria por si mesmo, intocado, a começar pelo velho telhado, e subindo nos prédios mais altos verdadeiras multidões se aglomerariam para olhar a montanha de entulho. Predadores roubariam pedaços de concreto, vendendo-os como talismãs. Ao final de algumas décadas, quase nada restaria do edifício original. Então, uma nova etapa seria inaugurada, com o vão de uma quadra quase inteira vazia, obedecendo ao formato original do prédio, sem muros nem grades, mas onde ninguém entraria. Pois seria de péssimo alvitre ultrapassar a linha imaginária entre a calçada e o espaço onde o prédio estivera. Crianças seriam educadas, por gerações a fio, a não pisar além dessa linha, deixando aquele terreno vazio no coração da cidade superpovoada. Restaurantes com varandas, apartamentos de cobertura, mirantes com lunetas seriam construídos voltados para o solo de terra e de cimento, onde algumas colunas permaneceriam de pé. E desfeito, derrubado pelo tempo, vazio até mesmo de seu piso e de suas paredes, o antigo edifício ofereceria à cidade o patrimônio de uma pergunta. "
Ó, Nuno Ramos (Iluminuras, 2008)
A foto acima é de José Barki, que também assina com Roberto Segre texto sobre a implosão do HU:
http://www.piniweb.com.br/construcao/arquitetura/roberto-segre-e-jose-barki-questionam-valor-arquitetonico-do-hospital-194771-1.asp
E tem o filme, feito pela Yasmin, cujos sons me alucinam: http://planocidade.wordpress.com/
Embora tentemos negar, ja me convenci que , de fato, tudo acaba . No entanto, o modo pelo qual isto é feito é que distingue a que civilizacão pertencemos.
ResponderExcluirÀ propósito, vc esteve na Modern Sound?