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Cais do Valongo / Que uma cidade é feita de muitas camadas, já sabemos. Roma, afinal, está lá, com suas ruínas milenares a pelo menos uns 10 m abaixo do nível da rua por onde hoje circulam turistas, carros, ônibus, lambretas... Mas no Rio, por algum motivo, andamos meio esquecidos disso. Deve ser porque temos uma quantidade incomum de marcos naturais extraordinários (as “montanhas sem vale”, que tanto fascinaram Max Bense), e acabamos nos habituando a olhar mais pra cima que pra baixo. 

Daí minha excitação ao saber que as obras na região portuária estão trazendo à tona vestígios há muito tempo escondidos sob o asfalto, guardando secretamente traços físicos da história da cidade. O mais impressionante deles eu vi hoje: o Cais do Valongo, na esquina das ruas Barão de Teffé e Sacadura Cabral.   

O cais foi construído em 1811, pouco depois da chegada da Corte portuguesa no Brasil, com o objetivo de transferir o desembarque e comércio de escravos do Terreiro do Paço (atual Praça XV), área mais nobre da cidade. Aí desembarcaram centenas de milhares de escravos vindos da África, e também a princesa Thereza Cristina, que iria se casar com D Pedro II e tornar-se imperatriz do Brasil. Por causa dela, o cais de pedra foi reformado, alargado e embelezado (em 1843), e rebatizado com o nome pomposo de Cais da Imperatriz. Depois, com a modernização do porto, ele foi aterrado (em 1911), como toda a região ao pé do Morro da Conceição, e perdido. Até que as obras recentes revelaram uma pedra, outra, um degrau... Agora o cais é ponto-chave do chamado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, um roteiro a ser feito a pé, que inclui a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos, os Jardins Suspensos do Valongo e o Largo do Depósito – e como é possível que tenhamos esquecido isso tudo?

 
Em nenhum outro lugar da cidade a brutalidade da escravidão é tão gritante e tão pública.  E ainda que nada indique, por ora, que essas pedras secas um dia mergulharam no mar (senão uma placa com o mapa atual da região), sou imediatamente tocada pela violência do sistema sócio-econômico que arrastou-as até aqui, e foi em grande parte responsável também pela evolução urbana da minha cidade.

Sei que o mar está logo ali. Mas olhando em direção a ele, o que vejo agora é a construção provisória e anódina que abriga a ultra-midiática exposição da prefeitura sobre os empreendimentos na região. E mais adiante, a avenida Rodrigues Alves, a Perimetral, e o muro de algum armazém. Preciso ao menos de uma fresta. Um fio d’água, que seja, onde eu possa mergulhar minha dor e vergonha.

Um comentário:

  1. Partilho suas palavras...acabei de visitar o local. As pedras gritam sua dor e as pessoas passam indiferentes...é o "porto maravilha".

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