Posto 05 /12


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Compartilhe Felicidade / Fui, com chuva e tudo. E foi bem mais fácil do que eu pensava. Bastou pegar um trem na Central, descer quatro estações depois e pegar o teleférico ali mesmo. Não precisei comprar outro bilhete, nem abrir o guarda-chuva. O que veio em seguida é que estou até agora digerindo. Um vôo rasante de cerca de 40 minutos sobre o Complexo do Alemão, num teleférico vermelho suspenso por cabos de aço, com a Baía de Guanabara e o Porto Maravilha ao fundo.

Os carrinhos vão e vem, sem parar. Dá uma certa tensão entrar e sair, mas a velocidade é tal que não há grande dificuldade. A não ser para uma senhora com compras, ou uma mãe com carrinho de bebê, penso. Mas também não sei, porque todos no meu carrinho eram turistas, com câmeras em punho, como eu.


Lembrei logo da Disney: lá também pulávamos dentro de um carrinho que nos levava num giro por uma realidade fantástica (e muitas vezes ameaçadora), da qual não raro me senti uma mera espectadora - e enquanto durou o percurso, confesso, também refém. Até as dimensões são mais ou menos as mesmas; aqui o carrinho tem 6 lugares. Parece um nada diante do fluxo de massa que imagino diante daquele mar de casas? A julgar pelo que vi, não: no meu carrinho, éramos 4 na ida e 3 na volta, e muitos outros estavam vazios (por volta do meio-dia de uma segunda-feira).

Mas que bobagem, o Alemão não tem nada a ver com a Disney. Nem mesmo com todos aqueles corações colados aos carrinhos, e todas aquelas mensagens otimistas (“compartilhe felicidade”, “aqui a alegria é contagiante”). E o quiosque da Kibon que me espera na estação mais alta - onde o que posso fazer senão tomar um picolé?

Na volta, penso de novo na senhora que sobe com as compras, na mãe com carrinho de bebê...Ok, o teleférico não é pra elas, é pra mim. E pra quem trabalha, não? No centro da cidade, imagino. Porque como o percurso é em linha – começa e termina em Bonsucesso -, imagino que num ou noutro sentido possa ser tão ou mais fácil subir e descer de van, de moto, ou mesmo a pé (da Fazendinha para o Engenhão, por exemplo, ou para Jacarepaguá).

Vou descendo e contando as estações, conforme elas vão despontando sobre os pontos mais altos da região e contracenando com a igrejinha da Penha, que antes dominava esta paisagem. Todas seguem um mesmo padrão, com variações de cores fortes: um bloco compacto, de alvenaria, encimado por uma cobertura tensionada branca - num esquema curiosamente análogo ao do New York City Center, shopping que trouxe a Estátua da Liberdade para a Barra da Tijuca. Mas não é isso o que me incomoda. Talvez a limpeza excessiva, que contrasta com as montanhas de lixo que vejo por todo lado lá de cima. Talvez a ausência completa dos expedientes de sobrevivência que lotam os trens da Central (onde foram parar os ambulantes ruidosos, com suas promoções incríveis?). Talvez os vasos de planta, cuidadosamente dispostos nos patamares das escadas largas e vazias. Não chega a ser o desvario do Elevador do Cantagalo, em Ipanema, mas tudo aqui soa meio artificial. Até a bela égua que pula na minha frente, de repente, em contraste com os vira-latas que vagam em torno da estação Palmeiras.

Talvez meu maior problema seja com a simetria e o sentido de composição que rege a arquitetura das estações. Num contexto como este, marcado por uma dinâmica tão acelerada, a imagem de equilíbrio que a estação promove pode ter sido deliberadamente buscada para contrastar com o caos do entorno, oferecendo-lhe alguma estruturação. Mas o arranjo absolutamente simétrico da fachada mostra, ao contrário, um discutível alheamento ao contexto e uma forte resistência à instabilidade e ao movimento contínuo que o define. Obediência a eixos e frontalidade, num campo tão altamente tensionado, embaralhado e dominado pelo improviso? Espaços fechados, rigidamente delimitados e compartimentados, que dificultam qualquer adaptação ou uso imprevisto, agora ou no futuro? A questão, mais uma vez, está na dificuldade de lidar com situações urbanas entrópicas e modos de ocupação que escapam a qualquer formalização, no sentido tradicional, engendrando continuamente configurações fluidas, complexas e mutantes.

Evidentemente, o custo de instalação e operação de todo o sistema não deve ser baixo - e pode-se discutir até que ponto se justifica, em função do número de pessoas efetivamente transportadas e da dependência de investimentos permanentes em manutenção, dificilmente sustentáveis a longo prazo. Mesmo assim, entendo que o teleférico é uma tentativa válida de encontrar solução para os graves problemas de acessibilidade das favelas cariocas, buscar a aproximação entre diferentes formas de ocupação da cidade e aumentar a presença do poder público em áreas críticas. Mas enquanto miro minha lente para baixo, num voyeurismo quase infantil, não tenho como não pensar também no efeito inverso: não há ninguém sobre as lajes, essas lajes que parecem ser justamente o espaço de maior liberdade do Alemão, por oferecer - até aqui, pelo menos - um território protegido de privacidade e sociabilidade de que suas casas e ruas não dispõem. Mas pode ser só porque chove, claro.

Um comentário:

  1. JULIO SARTORI6/5/12 10:46

    Muito interessante seu olhar sobre esta obra politicamente monumental.
    Uma obra que pode ser vista de muito longe com suas estruturas nodais simétricas culminando no topo de morros. Este talvez seja o partido do projeto, em que o Alemão é colocado no mapa, passando de área de exclusão para área de visitação, análoga ao zoológico.
    Infelizmente é isso o que está se tornando o teleférico.

    Estive por lá duas vezes, em todas as pessoas me olham com olhares de indiferença. Tento até quebrar o gelo, conversando com o moradores.
    Ná última visita (para uma possível abordagem em TFG), pude sair dessas bolhas sintéticas e fazer um percurso dentro da realidade da favela sozinho. Percebi que há muito a se fazer....

    grande abraço
    Julio Sartori

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