A Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves localiza-se à beira da Linha Verde, na região norte de Belo Horizonte. A construção do complexo de 265 mil metros quadrados visou unificar a administração estadual e ao mesmo tempo induzir a expansão da cidade em direção ao norte. Mas o empreendimento tem também fortes motivações políticas. É uma obra indissociável da política carismática de Aécio Neves e de sua ambição política. Não deve surpreender a ninguém, então, que o neto de Tancredo Neves tenha buscado Oscar Niemeyer, o arquiteto que definiu simultaneamente a imagem de modernidade de Belo Horizonte e de Juscelino Kubitschek com a Pampulha e outras obras que marcam a paisagem urbana da capital mineira. E ainda tenha feito questão de inaugurar a obra no dia em que se completaram cem anos do nascimento do ex-presidente Tancredo.
Conjunto é um resumo da obra do arquiteto
O conjunto é composto de cinco edificações autônomas e pouco articuladas, do ponto de vista urbanístico, entre si e com o entorno. O que tampouco chega a ser motivo de surpresa, em se tratando de Niemeyer: mais uma vez, apostase na criação de um foco de atenção, antes que numa conexão mais estreita com o contexto. No caso, o edifício de maior apelo imagético abriga o gabinete do Governador e os demais destinam-se às secretarias, auditório e centro de convivência.
O Palácio do Governo filia-se a projetos anteriores de Niemeyer, em particular às sedes italianas da Mondadori e do grupo Fata, que por sua vez seguem, com alterações e ajustes, a solução da caixa de vidro envolvida por uma sequência de arcos, iniciada em Brasília. Já as secretarias se acomodam em dois edifícios em curva, com 15 pavimentos cada. De certo modo encontra-se aí, portanto, uma espécie de resumo da obra do arquiteto. Dois de seus traços fundamentais, pelo menos, estão presentes: a forma livre e o virtuosismo estrutural.
A liberdade concedida à forma se manifesta nas curvas dos dois edifícios administrativos que se rebatem um sobre o outro. Já a exploração extremada da técnica moderna se mostra no Palácio do Governo, que, com seus 146 metros de vão livre (o dobro do vão do Museu de Arte de São Paulo), é alardeado como o maior vão suspenso do mundo. Contando, como sempre, com a solidariedade de um grande engenheiro (José Carlos Sussekind), Niemeyer realizou aí uma estrutura que só pode ser medida pela sua ousadia: 30 cabos de aço mantém em suspenso uma caixa de vidro de 4 pavimentos.
A solução não é uma novidade em si – embora distinta, a estrutura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, também foi resolvida, na década de 1950, com uma sofisticada solução atirantada que liberou o solo e os espaços expositivos. Mas nem por isso a última realização de Niemeyer deixa de impressionar por seu vigor. Há, afinal, uma carga de juventude nesse projeto que contribui para a sua visibilidade, embora também denuncie um dos problemas cruciais para a produção projetual contemporânea no Brasil: de um modo geral, a arquitetura brasileira não viveu a crise do moderno.
Na década de 1950, enquanto o pensamento arquitetônico e urbanístico mundial confrontava-se com a crise da modernidade, o Brasil construía Brasília. E no momento seguinte, quando a arquitetura começou a ser interrogada à luz da crítica pós-modernista, o Brasil vivia uma ditadura militar que bloqueava qualquer pensamento crítico. Esse quadro começaria a mudar com a abertura política, mas então o pós-modernismo acabaria se tornando uma espécie de chave mestra para a saída de um grande impasse: de um lado, a reverência à obra de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, de outro, a contestação própria de uma geração de arquitetos formados no período mais negro da ditadura militar (num processo protagonizado justamente por alguns arquitetos mineiros).
Criticar Niemeyer ainda é uma tarefa difícil
Pode-se então culpar Niemeyer por certo imobilismo da arquitetura no Brasil? Não. Se a arquitetura brasileira permaneceu alheia à crise do moderno, foi porque ficou entre uma prática capitalista predatória e uma reflexão teórica pobre na qual se expressou, desta vez pela via da esquerda, uma tônica populistae autoritária continuamente reeditada no Brasil.
Será um erro contratar Niemeyer hoje? Também não. Nenhum arquiteto brasileiro tem visibilidade sequer comparável à sua (basta lembrar a inauguração recente do hospital Sarah Kubitschek, no Rio, anunciada pela imprensa local sem qualquer menção à arquitetura e/ou ao responsável pelo projeto, arquiteto João Filgueiras Lima, dito Lelé). E compreendese facilmente porque os maiores arquitetos do mundo todo, quando vêm ao Rio, não só querem conhecer Niemeyer pessoalmente como mostram uma excitação quase infantil ao deixar seu escritório com um autógrafo, uma foto e se possível um croqui (cena que se repetiu, só nos últimos anos, com Zaha Hadid, Frank Gehry, Steven Holl, Christian de Portzamparc e Frei Otto). No fundo, então, o que impressiona mesmo é a escassez de cultura arquitetônica no Brasil hoje. E isso, não obstante as qualidades intrínsecas a certa produção contemporânea, dentro da qual podem ser incluídos tanto Lelé quanto Angelo Bucci.
Pelo jeito, não bastou a exemplaridade da produção das décadas de 1940 e 1950, que se irradiou a partir do Rio de Janeiro mas não tardou a brotar em Minas Gerais (além de Belo Horizonte, também em Cataguases, Diamantina, Ouro Preto). Tampouco foi suficiente a admirável longevidade dos grandes mestres da arquitetura moderna no Brasil (Lucio Costa, por exemplo, morreu perfeitamente lúcido aos 96 anos).
Na verdade, diferentemente da França, por exemplo, onde a arquitetura foi forçada a reorientar-se após a morte de Le Corbusier, no Brasil a presença atuante dos grandes mestres modernos em pleno final do século XX acabou se tornando, para muitos, uma ameaça a qualquer tentativa de emancipação. E ao contrário do que pode sugerir a quantidade de publicações e eventos suscitados pela comemoração recente do centenário de Niemeyer, ainda há uma grande dificuldade de abordar criticamente a sua obra.
Gramática niemeyeriana como marca comercializável
Chegamos a um ponto, no entanto, em que é difícil não se perguntar se alguns projetos que tem sido divulgados como sendo de Niemeyer são de fato seus. O próprio complexo mineiro já foi acusado de ter saído das suas gavetas. Não que, por princípio, isso seja condenável em arquitetura (considere-se, por exemplo, as semelhanças entre o Edifício Bacardi e a Galeria Nacional de Berlim, de Mies van der Rohe). Mas é difícil acreditar que, aos 102 anos, Niemeyer ainda esteja em condições de confiar a gênese da forma ao gestual pelo qual sua arquitetura se definiu, em seus melhores momentos.
Não raro, os traços que temos visto mostram características substancialmente distintas de seu procedimento projetual. E ainda que as maquetes possam ajudar, é difícil acreditar que a esta altura ele esteja disposto a rever sua concepção de arquitetura como criação individual, definida por meio de um risco fluente e decidido. O que em todo caso faz pensar na simplicidade da gramática niemeyeriana e sua exploração – já no limite da saturação – como uma marca facilmente identificável e comercializável.
Todo cuidado é pouco, portanto, para tratar da Cidade Administrativa de Belo Horizonte. O projeto é a prova mais cabal de que Niemeyer não é só o último grande Mestre da arquitetura. Nem só o grande imortal da arquitetura brasileira. Niemeyer é a juventude espantosa, e às vezes assustadora, do Brasil."